LONDRES (Reuters) – Dezenas de russos estão sendo submetidos a tratamento psiquiátrico compulsório por causa de suas opiniões políticas, de acordo com advogados e grupos de direitos humanos.
O tratamento psiquiátrico compulsório remete a um método de controle amplamente utilizado na União Soviética, conhecido como “psiquiatria punitiva”. Segundo as fontes, essa tendência voltou a ganhar força, em escala menor, desde o início da guerra da Rússia com a Ucrânia.
A Reuters analisou dados de um especialista internacional e de dois grupos russos de direitos humanos, entrevistou três advogados e revisou o material de casos de duas ativistas encaminhadas pela Justiça para tratamento psiquiátrico em um hospital da Sibéria.
As mulheres, cujos relatos são descritos em detalhes pela primeira vez, foram liberadas depois de algumas semanas e disseram que a experiência foi assustadora.
Uma delas, Yekaterina Fatyanova, de 37 anos, foi internada em 28 de abril do ano passado no hospital psiquiátrico KKPND No.1, em sua cidade natal, Krasnoyarsk, depois de ser acusada de desacreditar as forças armadas russas ao publicar um artigo em um pequeno jornal de oposição que dirigia em seu tempo livre.
Ela não era a autora do texto, que dizia que a guerra na Ucrânia tem motivações imperialistas.
Fatyanova afirmou em cartas enviada a autoridades e analisadas pela Reuters ter sido submetida a procedimentos dolorosos, degradantes e desnecessários, incluindo um exame ginecológico.
Ela recebeu alta em 27 de maio, depois que os médicos constataram, em um documento visto pela reportagem, que ela não tinha distúrbios ou doenças mentais.
“Acredito que o verdadeiro propósito de me colocar lá foi a supressão moral e isolamento da sociedade, possivelmente como punição por meu engajamento cívico ativo”, disse Fatyanova.
Robert van Voren, professor holandês e ativista de direitos humanos, que passou décadas estudando o que ele descreve como abuso político da psiquiatria na Rússia, disse ter documentado cerca de 23 casos desse tipo por ano desde 2022, quando a Rússia iniciou uma invasão de grande escala à Ucrânia.
O número supera a média anual de cerca de 5 casos registrada entre 2015 e 2021.
O Ministério da Justiça da Rússia, o comissário de direitos humanos e o Kremlin não responderam a pedidos de comentários sobre o suposto uso da psiquiatria para fins políticos.
O governo russo disse que não discute casos individuais que passam pelo sistema de justiça criminal já que esses assuntos caberiam aos tribunais.
O Hospital KKPND No.1 não respondeu a um pedido de comentário.
ESCALA PERTURBADORA
Na era soviética, milhares de dissidentes foram hospitalizados por motivos políticos com base na premissa de que somente alguém com doenças mentais se oporiam ao Estado comunista.
Embora muito abaixo da escala na era soviética, a tendência atual é “perturbadora”, disse van Voren.
Para Dainius Pūras, psiquiatra lituano que atuou como relator especial da ONU sobre o direito à saúde, a erosão das reformas democráticas na Rússia teve um “impacto prejudicial sobre a psiquiatria russa”.
Segundo ele, o uso de psiquiatras nomeados pelo Estado em processos judiciais no país provavelmente leva a decisões que atendem aos interesses das autoridades nacionais.
O grupo de direitos humanos russo Memorial identificou 48 pessoas que, conforme a entidade, estão sendo submetidas a tratamento psiquiátrico compulsório por motivações políticas. Dessas, 46 estão em internadas e duas recebem tratamento na prisão.
As acusações mais comuns contra elas estão relacionadas a críticas à guerra com a Ucrânia. Treze pessoas foram processadas no âmbito das leis de censura aprovadas logo após a invasão russa, disse o grupo de direitos humanos.
“PSIQUIATRIA PUNITIVA”
Em carta a autoridades, a jornalista Fatyanova disse ter sido levada ao hospital KKPND No.1 por oficiais do Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) e que foi pressionada a assinar formulários sem seu consentimento.
Ela relata ter pedido demissão de um emprego porque a companhia se recusou a conceder uma licença. Fatyanova também disse que foi demitida de outra empresa em dezembro de 2023, depois que o FSB começou a investigá-la.
Segundo a jornalista, no hospital, algumas vezes pacientes não podiam fazer caminhadas diárias, recebiam pão mofado e eram frequentemente perturbados por gritos femininos vindos de outro andar do prédio.
O Ministério da Saúde respondeu Fatyanova por escrito rejeitando suas reclamações. No entanto, a inspetoria regional de saúde disse em uma carta datada de 1º de outubro ter advertido o hospital para obter o consentimento informado de pacientes.
Em dezembro, Fatyanova foi condenada pelo artigo de jornal a dois anos de trabalhos forçados, mas a aplicação da pena ainda depende da análise de recursos judiciais, disse a jornalista.
No hospital, ela conheceu Olga Suvorova, de 56 anos, uma ativista de questões sociais e ambientais, que disse à Reuters também ter sido submetida a testes invasivos e desnecessários, mas que ela se recusou a assinar um termo de consentimento.
“Isso é psiquiatria punitiva”, disse Suvorova em entrevista por telefone. “O objetivo de tudo isso é me difamar, menosprezar minha contribuição (…) e me caluniar e fazer com que as pessoas não confiem mais em mim.”, afirmou.
Documentos mostram que a internação de Suvorova teve origem em uma investigação criminal que a acusa de ter feito uma falsa denúncia de agressão policial em outubro de 2023.
Suvorova diz que foi maltratada pela polícia e embasou sua denúncia em um laudo médico mostrando hematomas que exigiram que ela usasse tipoia por duas semanas.
Em dezembro de 2023, ela foi presa devido às acusações enquanto voltava de um encontro em Moscou com a opositora do governo Yekaterina Duntsova.
Ao se recusar a admitir o delito, um investigador ordenou que Suvorova fosse submetida a duas avaliações psiquiátricas ambulatoriais.
Um dos laudos médicos constatou que ela apresentava sinais de transtorno de personalidade, incluindo comportamento impulsivo e uma “fixação no desejo de ajudar outras pessoas”.
Em maio, um tribunal encaminhou Suvorova para internação no hospital KKPND No.1, segundo documentos analisados pela Reuters.
Suvorova disse que foi somente depois de reclamar sobre o tratamento recebido que ela recebeu alta, após três semanas, depois que um laudo médico indicou que ela não sofria de nenhum distúrbio psiquiátrico.
(Reportagem de Lucy Papachristou e Mark Trevelyan)
Por Mark Trevelyan e Lucy Papachristou
Reuters