“Os interesses políticos falaram mais alto”, resume o sociólogo João Lukombo. A conclusão do acadêmico se refere à reviravolta na decisão de Angola no caso da disputa pelo domínio da Igreja Universal do Reino de Deus, fundada pelo bispo brasileiro Edir Macedo, no país.
De fato, tem cheiro de pecado o surpreendente recuo do governo de reconhecer oficialmente a ala angolana revoltosa como liderança oficial da Igreja Universal do Reino de Deus.
Após referendar a dissidência em dezembro de 2020, impondo uma dura derrota para Macedo, o Estado assinou decisão no dia 28 de março deste ano aval para que o comando da igreja voltasse para o controle brasileiro, representado em Angola pelo bispo Alberto Segunda.
O porta-voz do movimento Reforma, bispo Felner Batalha, considerou a nova decisão “estranha, anormal e fora dos parâmetros legais”. Disse ter enxergado na nova resolução do governo “a mão invisível do bispo Edir Macedo”.
“Aconteceram coisas fora do normal. Houve violação grave dos estatutos da igreja, violação grave daquilo que o tribunal supremo [equivalente ao Superior Tribunal Federal], em um acordo proposto, não havia decretado. Houve violação de uma sentença do tribunal da primeira instância, que transitou em julgado”, disse o angolano.
Para o bispo Batalha, como os líderes da Reforma apresentaram o recurso, previsto em lei, essa nova decisão estaria suspensa. “A decisão não pode vigorar, enquanto o presidente não responder ao nosso pedido. Também há um pedido semelhante no Judiciário”, argumentou.
Na carta encaminhada ao ministro da Cultura, o bispo Valente Luís informou que a ala da Universal liderada por ele irá às ruas em manifestações. “Face a esta situação, a direção da IURD-Angola informa que está a tomar todas as medidas necessárias para um amplo movimento contestatório contra a corrupção nas instituições públicas, que contará com a realização de ações, vigílias, marchas etc”, diz a carta.
90 por cento sob comando do grupo da Reforma
A Universal possui hoje em Angola 89 templos na capital Luanda, e outros 72 em suas 18 províncias, entre os imóveis próprios e alugados. Mais de 90% deles estão sob o comando da ala angolana do grupo da Reforma, segundo Batalha.
A ala de Alberto Segunda, porém, controla agora as catedrais do Maculusso, do Alvalade, na capital; de Talatona, cidade da província de Luanda; e um grande templo na província de Benguela.
Os bispos e pastores dissidentes renomearam o nome da instituição para Igreja Universal de Angola. Os religiosos locais – mais de 300 de um total de 455 – assumiram o controle da esmagadora maioria dos 331 templos da Universal no país. Parte dos pastores brasileiros retornou ao Brasil.
Os bispos e pastores angolanos acusaram a direção brasileira da igreja de evasão de divisas, expatriação ilícita de capital, racismo, discriminação, abuso de autoridade, imposição da prática de vasectomia aos pastores e intromissão na vida conjugal dos religiosos.
Os angolanos também denunciaram a venda de imóveis da igreja. Segundo eles, o patrimônio era vendido às escondidas, sem a aprovação dos dirigentes locais da igreja – o que seria ilegal.
Conforme as denúncias dos bispos angolanos, o dinheiro da Universal saía de Angola por via terrestre para chegar a Edir Macedo. Nos dias seguintes à Fogueira Santa – período fértil para a coleta de ofertas –, Macedo, que tem passaporte diplomático, desembarcava em Portugal com o seu avião particular. De lá, o jato seguiria para a África do Sul e voltava carregado.
O dinheiro vindo da África seria trocado por euros diretamente com doleiros em Portugal. Depois, era enviado para os Estados Unidos, para o Reino Unido e para a Record. Os bispos angolanos calcularam que a Record da Europa receberia cerca de 500 mil euros ao mês da operação. Segundo as denúncias, as somas coletadas pelos templos em Angola chegavam a 80 milhões de dólares.
Após as denúncias, promotores e policiais cumpriram mandados de busca e apreensão em escritórios da igreja e residências de bispos e pastores brasileiros. As autoridades angolanas apreenderam computadores, câmeras de segurança, livros de contabilidade e documentos bancários.
Ao menos 25 catedrais e templos da Universal foram fechados e confiscados pelas autoridades do país. As denúncias passaram a ser investigadas pela Procuradoria-Geral da República de Angola e pelo Serviço de Investigação Criminal, um misto de polícias Civil e Federal no país.
Depois das buscas e apreensões, missionários brasileiros da Universal, que estavam no país e tinham os seus vistos vencidos, foram mandados de volta, enchendo aviões.
A Procuradoria Geral da República de Angola denunciou à Justiça quatro lideranças da Igreja Universal pelos crimes de lavagem de dinheiro, associação criminosa e imposição da prática de vasectomia.
Destes, dois eram brasileiros: o bispo Honorilton Gonçalves, ex-vice-presidente da TV Record no Brasil e então líder espiritual da Igreja Universal em Angola, e Fernando Henriques Teixeira, pastor e executivo da TV Record África. Os outros dois são os angolanos Antonio Miguel Ferraz, bispo, e Belo Kifua Miguel, que é pastor.
Em março de 2022, Teixeira e os dois angolanos foram absolvidos. Honorilton Gonçalves foi condenado a três anos de prisão, mas apenas pelas acusações de violência doméstica e imposição de vasectomia a pastores. A pena de Gonçalves foi suspensa por dois anos logo após a sentença do juiz Tutri Antônio, presidente da 4ª Secção dos Crimes Comuns de Angola, devido a um recurso apresentado
Ex-pastores teriam promovido “ataques xenófobos”
Na ocasião, a Igreja Universal do Reino de Deus de Angola afirmou em nota oficial que os templos no país foram invadidos “por um grupo de ex-pastores desvinculados da Instituição por práticas e desvio de condutas morais e, em alguns casos, criminosas e contrárias aos princípios cristãos exigidos de um ministro de culto”.
A Universal disse que os ex-pastores teriam usado a violência e promovido “ataques xenófobos”, além de agredir pastores, esposas de pastores e funcionários “com objetivo de tomar de assalto a igreja, com propósitos escusos”.
A nota afirma ainda que os invasores espalharam “mentiras absurdas, como essa acusação de racismo”, para confundir a sociedade angolana. “Basta frequentar qualquer culto da Universal, em qualquer país do mundo, para comprovar que bispos, pastores e fiéis são de todas as origens e tons de pele, de todas as classes sociais.
Em Angola, dos 512 pastores, 419 são angolanos, 24 são moçambicanos, quatro vieram de São Tomé e Príncipe e apenas 65 são brasileiros”, afirma a instituição.
E finaliza: “Esclarecemos que, respeitada a unidade de doutrina da fé que une a Igreja Universal do Reino de Deus em todos os 127 países onde está presente, nos cinco continentes, a Universal de cada nação dispõe de total autonomia administrativa para encaminhar e resolver suas questões locais, sempre observando as leis e as tradições. O que se espera é que as autoridades restabeleçam, com urgência, a ordem legal e possam assegurar que a Universal continue salvando vidas e prestando ajuda humanitária em Angola, como faz há 28 anos”.