Luanda – A União Africana (UA) deve deixar de depender de financiamentos externos e ser capaz de criar um orçamento próprio mais robusto para poder fazer frente aos diferentes problemas que afectam o continente, recomenda o analista político Adálio Francisco.
Em entrevista à ANGOP a propósito da presidência de Angola na União Africana, o politólogo disse que, para o efeito, deve ser feito um trabalho interno a nível dos Estados, para que haja mais produção no continente em todos os aspectos e estar-se independente dos produtos externos, incluindo agrícolas.
“Temos que produzir no nosso continente. A produção faz-se a nível dos países, porque a União Africana é o nível estratégico, uma vez que as organizações regionais constituem o nível táctico, mas os Estados constituem o nível operacional”, referiu.
Conforme Adálio Francisco, todas as mudanças a serem promovidas e os objectivos anunciados pela UA têm os Estados, com as suas políticas internas ou domésticas, como as suas fábricas.
Neste sentido, frisou que a União Africana está como uma plataforma que propõe estratégias e objectivos que devem ser trabalhados a nível da política interna dos Estados e dos governos nacionais, enquanto órgãos de base.
No seu entender, a garantia de maior valorização do mercado de trabalho local não depende de um único factor, mas sim de vários e complexos, ligados a factores como saúde, educação, entre outros.
Para o analista, o índice de desenvolvimento humano e de infra-estruturas económicas, bem como uma série de políticas públicas vão criar, em conjunto, condições para que o cenário africano se altere.
“Temos que ter recursos suficientes para atacarmos uma frente como esta, pois, se a gente mexe na educação, ficamos sem recursos para mexer na saúde ou para mexer nas infra-estruturas críticas e se mexermos nas infra-estruturas críticas, depois nós não teremos recursos para mexer noutros sectores”, sublinhou.
Na conversa, o politólogo aborda também, além dos problemas africanos, sobretudo os conflitos nas regiões dos Grandes Lagos e na África Ocidental, questões internacionais como a nova postura dos Estados Unidos sob Donald Trump, a guerra na Ucrânia e o futuro das relações transatlânticas com foco na postura da União Europeia e da NATO.
Eis a entrevista na íntegra:
ANGOP – Que desafios se colocam à União Africana (UA) de forma geral?
Adálio Francisco (AF) – Os desafios da União Africana já estão muito bem identificados, são aqueles que podemos considerar como permanentes da União Africana, porque são desafios de África, enquanto continente, que passam necessariamente por um diagnóstico já existente, que é o frágil desenvolvimento socioeconómico do continente. Daí que a própria União Africana, através da sua Agenda 2063, já elegeu, portanto, desafios como a promoção da boa governação, do desenvolvimento e até da própria integração económica do continente como prioridade.
Portanto, e naturalmente, isto nos leva a esta perspectiva geral de uma África mais desenvolvida, mais próspera, com infra-estruturas económicas e outras, que possam de facto galgar o continente nos carris do desenvolvimento. De modo geral, são estes os grandes desafios de África, da União Africana, que se prendem com a urgente necessidade de desenvolvermos os países africanos e, concomitantemente, o continente.
ANGOP – Entrando para a questão da fuga de cérebros, que políticas a presidência de Angola deve adoptar para mitigar o fenómeno no continente?
AF – A resposta a este fenómeno não é simples. Do ponto de vista realístico, não é possível resolver este problema durante um ano de presidência de Angola, porque a fuga de cérebros tem a ver com questões muito mais complexas, que não se resolvem neste curto período de tempo.
As causas imediatas da fuga de cérebros é a falta de condições técnicas, científicas e até económicas para absorver e prender estes cérebros no continente. Vejamos, as grandes multinacionais, as grandes empresas ligadas a tecnologias e outras áreas emergentes em pleno século XXI estão, naturalmente, espalhadas pelo Ocidente; outro ponto, as maiores universidades e centros de pesquisas que precisam destes cérebros estão, na sua maioria, espalhadas pelo Ocidente.
Portanto, com a duração apenas de um ano, não será possível o Presidente da República promover e liderar políticas que venham resolver isto, em um curto espaço de tempo.
Inteligentemente, eu penso que nem deve ser esta uma das prioridades do Presidente João Lourenço, na qualidade do presidente da União Africana.
Em síntese, o baixo investimento nas questões de pesquisa científica, isso de modo geral faz com que os cérebros emigrem para outras paragens do mundo. E, já que tocou nisto, eu até tive acesso a um relatório em que nós temos apenas cerca de 20, se a memória não me atraiçoa, cerca de 20 universidades. Portanto, num universo de mil universidades, nós temos em África apenas cerca de 20 universidades. Portanto, isso diz tudo, porque os cérebros actuam junto das universidades, junto dos principais centros de pesquisa, junto de várias indústrias, que naturalmente precisam desse cérebro para levar a cabo pesquisas científicas que vão alimentar a cadeia industrial desses sectores.
Tudo isto faz com que nós precisamos de olhar aqui para a questão da ciência e da tecnologia. Os nossos orçamentos para os centros de pesquisa, para as universidades, ainda são muito baixos. Nós investimos pouco e isto é um problema muito sério, porque hoje, em pleno século XXI, as pessoas ainda têm uma noção, um conceito muito retrógrado de poder.
Hoje, o conhecimento é um dos factores de poder.
Conhecimento é poder. E quando nós não temos conhecimento no mundo do século XXI, portanto, nós ficamos lá na cauda, continuamos no subterrâneo do globo terrestre.
Ou seja, sem conhecimento, não se vai a lado nenhum. Tudo quanto a gente passa enquanto continente, a dependência económica, não é só uma dependência económica, é uma dependência também do conhecimento.
ANGOP – Já agora, quais devem ser as prioridades?
AF – As prioridades devem ser aquelas que apresentam maiores probabilidades de exequibilidade. Mas já temos uma condicionante que tem a ver com a questão dos conflitos no continente, porque é uma situação urgente, que poderá consumir o tempo do presidente da União Africana.
Mas eu penso que o principal eixo de força do Presidente da República deveria ser a questão da Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA). Nós sabemos que a projecção do continente para esta questão da integração económica continental vai sendo feita de forma faseada. Ou seja, primeiro, esta integração deve acontecer a nível das sub-regiões, como a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC), Comunidade dos Estados da África Ocidental (CDEAO), etc.
Portanto, tem de haver primeiro uma integração sub-regional para depois, paulatinamente, ir-se caminhando numa integração continental. E, falando nisto, nós, enquanto SADC, ainda não apresentamos uma proposta de união aduaneira. E isto será um factor de pressão para o Presidente da República, enquanto presidente em exercício da União Africana, porque a nossa organização, da qual Angola faz parte, que é a SADC, ainda não apresentou sequer, junto do Secretariado da União Africana, a sua proposta de união aduaneira, que é um passo importante para a própria integração económica, primeiro da sub-região e depois a nível continental. Por isso, um ano é muito pouco, mas, talvez o Presidente pudesse imprimir alguma velocidade nesses processos e depois o seu futuro sucessor dar continuidade.
O Presidente já apresentou também a sua agenda. Estamos aqui a apresentar a nossa perspectiva e um dos elementos da agenda do Presidente passa pela atracção de investimento estrangeiro para o continente. Do ponto de vista prático, atrair investimento para o continente seria um pouco complexo, porque tem sido normalmente feito através dos contactos bilaterais, ou seja, dos contactos africanos, dos Estados africanos com os vários actores internacionais, mas é possível, porque nós inclusive sabemos que quem patrocinou a sede da União Africana foi a China, mas o grande trabalho deve ser mesmo feito a nível dos Estados.
Mas a aceleração da integração continental seria uma prioridade. Só que, como já disse, para além da condicionante dos conflitos, agora vamos encontrar outras condicionantes, porque, olhando para a própria geopolítica e para a actual política externa americana do Presidente Donald Trump, que vem retirando o apoio, o financiamento a agências de desenvolvimento que actuam em África, não só falamos da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), mas também falamos da retirada dos Estados Unidos da Organização Mundial da Saúde, que financia vários programas de saúde pública em África para combater doenças endémicas como a cólera, a malária, o HIV-Sida e a tuberculose.
ANGOP – Que impactos poderá ter essa postura dos Estados Unidos da América a nível do continente?
AF – Isto a curto prazo poderá ter um impacto muito negativo. Mas há também um detalhe: segundo os procedimentos, os Estados Unidos, mesmo apresentando esta intenção, o processo de retirada pode levar até um ano, ou seja, é o período que o presidente vai estar em exercício. Então, os impactos poderão não ser tão negativos assim, por causa dessa moratória.
ANGOP – Se, eventualmente, o fenómeno fuga de cérebro continuar, o que é que se pode prever em termos de consequências para o continente?
AF – A consequência imediata é não sermos capazes de criarmos condições básicas para tocarmos o nosso desenvolvimento. Quem vai tocar o desenvolvimento africano? Se nós olharmos um pouco para a história de países como o Japão, a China, essencialmente esses países asiáticos, se olhamos para a própria história de reformas que os levou até ao patamar a que eles chegaram, vamos ver que tudo se resume no conhecimento. Há dado momento, os governos do Japão e da China perceberam que só podiam desenvolver-se se tivessem recursos humanos qualificados, homens e mulheres com conhecimento para promover o desenvolvimento dos seus países.
E hoje estão ali. Isto é o fundamental, por isso é que pensar em desenvolvimento inevitavelmente é pensar no homem. Só para terminar, uma das fragilidades do nosso continente é justamente essa questão de recursos humanos qualificados.
ANGOP – Os investimentos feitos no Sector da Educação, dão-nos garantia de termos quadros capazes de desenvolver o continente e, de forma particular, os países?
AF – Não. Nós olhamos para África, temos algumas excepções. De forma geral não, sem dúvida que não, porque não é suficiente, a nossa média é muito baixa e, aliás, basta lembrarmo-nos da Covid-19, há bem pouco tempo, e olhar para a postura de África. Nós ficamos com as mãos estendidas à espera que os europeus, os americanos terminassem as vacinas que estavam em curso para nos mandarem algumas doses.
Isso diz tudo, porque nessa altura, pelo menos, no Egipto ou na África do Sul, dois países que apresentam maior desenvolvimento a nível das universidades e centros de pesquisa, teríamos alguns laboratórios a trabalhar numa possível vacina contra a Covid-19 cá em África, mas isto não aconteceu.
ANGOP – Que estratégia a União Africana deve adoptar para garantir maior valorização do mercado de trabalho local?
AF – Essas questões não dependem de um único factor. São questões complexas que tocam factores como saúde, educação e outros ligados ao próprio índice de desenvolvimento humano, infra-estruturas económicas, bem como uma série de políticas públicas que em conjunto vão criar condições para que o cenário se altere.
Daí é que elas são complexas, porque são daqueles problemas que, para serem resolvidos, precisamos atacar vários sectores e a coisa fica mais complicada, porque atacar vários sectores depois implica outras nuances. Temos que ter recursos suficientes para atacarmos uma frente como esta, pois, se a gente mexe na educação, ficamos sem recursos para mexer na saúde ou para mexer nas infra-estruturas críticas e se mexermos nas infra-estruturas críticas, depois nós não temos recursos para mexer noutros sectores.
Este aqui é o grande problema. Daí que é importante que a União Africana seja capaz de ter um orçamento mais robusto para fazer frente a estes problemas todos. Mas, mais do que isso, (é preciso que) o trabalho interno a nível dos Estados seja feito para que haja mais produção a nível do continente em todos os aspectos e estarmos independentes de produtos agrícolas, etc.
Nós temos que produzir isto no nosso continente e a produção faz-se a nível dos países, porque a União Africana é o nível estratégico, as sub-regiões, as organizações regionais constituem o nível táctico, mas os Estados constituem o nível operacional. Isto quer dizer que todas as mudanças promovidas e os objectivos anunciados pela União Africana, no fundo, têm os Estados, as políticas internas ou domésticas, como as suas fábricas.
A União Africana está aí como uma plataforma que propõe estratégias, propõe objectivos, mas estes objectivos e estratégias devem ser trabalhadas a nível da política interna dos Estados, dos governos nacionais. E nesse esquema todo acaba por ser o órgão de base.
ANGOP – Os países africanos têm estado a recrutar mão-de-obra estrangeira em diferentes sectores, relegando os trabalhadores nacionais, num contexto marcado pela actual escassez de emprego. O que tem a dizer a respeito?
AF – Há questões muito simples. Os expatriados levam vantagem desse ponto de vista porque, em tese, apresentam melhores e maiores qualificações que os nacionais, sobretudo, para aquelas funções mais complexas, mais exigentes do ponto de vista da qualificação humana.
Agora, o que tem que ser feito aqui é um equilíbrio. É um equilíbrio entre os expatriados que devem vir para exercer funções que de facto os nacionais não consigam exercer, mas evitarmos trazer expatriados para executar funções que os nacionais podem de facto fazer.
A inteligência deve estar nesse ponto de equilíbrio. E agora que falou dessa questão dos expatriados, isso vem, outra vez, mencionar a questão de que nós já falamos aí atrás sobre dependência, ela não é só financeira. Somos dependentes. Daí que temos que ter políticas de formação de quadros para, paulatinamente, irmos substituindo estes expatriados.
Vamos enviar os nossos cidadãos lá para o exterior, vamos formá-los. E paulatinamente vamos substituindo os expatriados pelos nossos próprios técnicos, porque tudo se resume à formação. E a capacidade intelectual não tem nada a ver com o país de origem, com a tonalidade ou a cor da pele, todos nós, enquanto seres humanos, temos capacidades intelectuais. A diferença é que os outros participam do processo de formação sólido, seguro, competente e nós, enquanto africanos, ainda temos dificuldades.
ANGOP – As políticas de emprego e remuneratórias implementadas pelos Estados africanos têm sido as mais adequadas?
AF – Não, não podem ser as mais adequadas, porque, se comparadas depois com as taxas praticadas em sociedades muito mais sólidas, avançadas e desenvolvidas, elas ficam muito aquém da realidade desse ponto de vista. Isso também é um factor de fuga de cérebros.
Mas também tem uma explicação e é simples: essas sociedades melhor posicionadas são muito mais autónomas, muito mais independentes, são muito mais produtivas, ou seja, em síntese, elas são mais ricas, produzem mais riquezas que nós. Logo, estão em condições de remunerar melhor os seus cidadãos do que nós.
Mas, para que nós possamos ultrapassar isso, temos que fazer o nosso trabalho de casa. Temos que organizar a casa. São processos, isso não se faz em cinco, 10, 15 anos, mas, a cada período pode-se ir fazendo alguma coisa. E, quando tivermos aqui o cumulativo de 20, 30 anos, então chegamos ao nível que nós desejamos. Mas para isso é preciso, de facto, trabalhar seriamente.
ANGOP – No que toca aos conflitos registados no continente, com envolvimento do Rwanda e da RDC, e a presença do grupo rebelde M23 no território deste último país, bem como a postura do Presidente Paul Kagame nas negociações, qual deverá ser o posicionamento do Presidente da União Africana, que até já tem vindo a mediar essas negociações?
AF – A começar pelo que aconteceu durante alguns encontros da Cimeira de Luanda, a postura do Presidente Paul Kagame, quando ele diz que o problema da República Democrática do Congo é um problema interno, é isto que ele tem dito, ele diz “meia verdade”, porque, de facto, o problema do Congo tem que ser compreendido em dois níveis: temos o nível interno, mas depois temos o nível regional, a questão da ingerência do Rwanda.
Ele diz meia verdade porque, de facto, o problema do Congo tem que encontrar uma solução interna. Fazendo um breve histórico, para o Governo congolês, o M23 é um movimento estrangeiro. No caso concreto, rwandês. O problema é que, ao longo da história do Congo, os tutsis e os hutus nunca foram muito bem aceites como sendo uma etnia congolesa. Logo, isso começou desde o período colonial.
Primeiro, o século antes da colonização, já existiam algumas vagas migratórias de tutsis e hutus para a região leste da República Democrática do Congo, antes da colonização.
Depois da colonização, os belgas foram levando para o Congo os tutsis para trabalharem nas fazendas de plantação de algodão. Estou com isso a querer dizer o quê? Que fazendo esse recurso histórico, os tutsis e os hutus, eles não estão só no Rwanda como não estão só no Uganda. De facto, também, como etnia, eles estão no Congo, tanto é que os tutsis e os hutus congoleses falam francês, mas os tutsis e os hutus do Rwanda e do Uganda falam inglês.
Aquilo aí é uma etnia da região dos Grandes Lagos. Só que eles foram sempre encontrando essa dificuldade de serem aceites como congoleses. Porque o colonizador, quando chegou, já colocou os termos de indígenas e não indígenas.
E, a partir daí, os tutsis e os hutus começaram a ter problemas de ter direitos à terra e outros direitos, não podiam ser eleitos para cargos políticos. Daí que o próprio Governo congolês fez sair dois decretos, um em 1972 e outro em 1981. Nesses dois decretos, era justamente para resolver a condição da nacionalidade congolesa dessas etnias.
Um deles reconhecia os tutsis como sendo congoleses, mas que não podiam ser eleitos para cargos políticos. Depois, no outro, remetia a uma condição que só podiam ser considerados tutsis congoleses aqueles que já estivessem em ligação com o território congolês, a partir de 1885, data da Conferência de Berlim.
Agora, vindo aqui para a história mais recente, o problema do Rwanda, o genocídio de 1994, ele encontra já a sociedade congolesa com esse problema dos tutsis e dos outros que se são ou não são congoleses. Em 1994, quando aconteceu o genocídio do Rwanda, abriu-se uma vaga migratória. Então, quer tutsis, quer os outros, refugiaram-se na zona Leste da RDC, mas já havia tutsis e outros na República Democrática do Congo. O que foi acontecendo? Como eles estavam divididos por um problema político e militar, o genocídio, o conflito basicamente se estendeu.
Então, o que foi acontecendo? Mesmo em território congolês, os outros que tinham sido assassinados maioritariamente, foram criando grupos armados para se defender também dos tutsis que já estavam na RDC. É aí que surge também essa questão do M23 e também das Forças Democráticas para a Libertação de Rwanda (FDLR), porque a FDLR é anti-regime Kagame. Os outros foram maioritariamente assassinados pelos tutsis que são da etnia do Presidente do Rwanda.
Então, a FDLR luta e aspira um dia desses voltar ao Rwanda para derrubar o regime dos tutsis, que é o regime do Presidente actual. E depois, os tutsis que actuam como sendo o M23 e o Presidente Kagame tem os tutsis da Frente Democrática Congolesa (FDC) como uma espécie de segurança de grupo tampão à FDLR. Por isso é que depois já vamos para o nível regional.
Por outro lado, o Presidente Kagame de facto patrocina o M23, mas com o argumento de que no Congo também actua um grupo que quer derrubar o Governo do Rwanda, que são as FDLR. Mas também temos outros actores como as forças aliadas, as forças democráticas aliadas. Essas forças democráticas aliadas são do Uganda e por isso é que também o Exército ugandês está presente na FDC. Porque supostamente luta ao lado do Exército congolês e em troca também para combater as forças aliadas que são inimigas do Governo do Rwanda.
ANGOP – De forma resumida, por que razão, até hoje, ainda não se resolveu este conflito? Qual é o principal factor?
AF – Isto também não é tão simples assim. Mas não se deu porque, podemos aqui avançar rapidamente alguns sinais: primeiro, a postura do Governo congolês em dizer que não negocia com o M23, isto também é um elemento que tem contribuído para o fracasso das negociações.
ANGOP – E deveria, no seu entender, negociar?
AF – Sim, deveria explorar, pelo menos, essa possibilidade. O Governo estaria a dar uma oportunidade para também perceber e melhor posicionar-se e fazer a leitura do conflito, perceber o que eles querem, etc; o outro ponto é que o Presidente do Rwanda, de facto, também não está a agir de boa fé, quando diz que ele não apoia. Ele de facto apoia. Mas também é necessário que o Governo congolês converse com o M23.
Agora, aqui um aspecto também que devemos dizer de forma muito clara. Eu costumo colocar a questão nos seguintes termos: se o Governo congolês chega a acordo com o M23, a RDC será um país pacífico? Será um país integrado, com integridade territorial? A resposta é negativa. Não será, porque aqui uma razão de fundo, e tem que ser muito bem clara, a FDC, os sucessivos governos congoleses, têm sido incapazes de ter sob controlo todo o território do Congo. Este também é um problema muito sério.
Ou seja, há uma incapacidade de o Estado congolês administrar o seu próprio território, permitindo, de certo modo, a “infiltração” ou que os cerca de 200 grupos de chefes de guerra actuem na FDC, porque, e isto não é um problema começa com a independência do Congo.
Mesmo no tempo colonial, o colonizador nunca conseguiu controlar o Congo por completo.
Então, este vazio da autoridade do Estado fez com que os senhores da guerra foram controlando pequenos territórios, e muitos deles com minerais estratégicos, e criaram aí o seu Estado, ou seja, um Estado dentro do outro.
Portanto, este é um problema seríssimo, e nós estamos a ver que o próprio Exército congolês tem dificuldades em derrubar militarmente o M23.
ANGOP – Qual deverá ser o posicionamento da presidência da União Africana para fazer face a estes problemas, sem esquecer que já tem estado a mediar esse conflito?
AF – Pois, a União Africana sempre esteve aí, o conflito do Congo também sempre esteve aí.
Para ser sincero, e por mais boa vontade que o Presidente João Lourenço tenha, e tem feito muito esforço, tem-se empenhado incansavelmente, eu estou céptico quanto a uma resolução efectiva já neste mandato, porque a União Africana, enquanto mediadora, ela pode e deve fazer o seu papel, mas o fim do conflito dependerá em última instância da vontade das partes.
Nós podemos ir acudir um conflito, mas se as partes não quiserem parar de conflituar-se, a nossa mediação pode valer muito pouco. Agora, o que tem que ser feito é, aqui eu volto à questão do conhecimento, mesmo os conflitos devem ser estudados, a União Africana deve ter peritos que vão lá perceber as causas reais e depois trabalhar sobre elas.
Por exemplo, a União Africana tem de ser capaz de convencer o Governo congolês, de uma vez por todas, a parar de tratar os tutsis congoleses como estrangeiros, porque se o Governo congolês mantém essa postura intransigente de olhar os tutsis como estrangeiros, então isto aqui poderá ser um factor de estrangulamento à própria mediação da União Africana, é a tal componente interna do conflito.
Feito isto, a União Africana agora deverá trabalhar justamente com o Presidente do Rwanda, para que cesse definitivamente o apoio ao M23. O M23, enquanto grupo armado, tem de ser desmobilizado.
Outros vão integrar as Forças Armadas Congolesas. Isso já aconteceu. Já aconteceu no tempo do Presidente Joseph Kabila (filho), houve um acordo com o M23, muitos deles integraram as Forças Armadas Congolesas, mas isso foi em 2009.
Mas, como depois eles acusaram o Presidente Kabila de não ter cumprido os acordos, então eles romperam com o compromisso. Por isso é que o movimento se chama M23, de 23 Março, justamente para indicar que os acordos de 23 de Março de 2009 não tinham sido cumpridos pelo Governo congolês.
Então eles a partir daí, em 2012, ressurgiram e liderados por um general que já estava no Exército congolês. Em suma, o Congo também tem de fazer aqui a sua parte, por mais boa fé, mais empenho que a União Africana apresente.
Mas aquilo que é interno, aquilo que é problema que o Governo congolês deve tratar, as situações que devem ser resolvidas pelo Governo congolês, então que sejam resolvidas. Porque, se não, a mediação vai ter pouco efeito.
ANGOP – O que pode dizer a respeito do problema dos conflitos no Sudão?
AF – Os conflitos no Sudão são um outro problema que a União Africana, sob presidência angolana, terá de enfrentar também durante esse ano de mandato, pois, é um conflito praticamente esquecido a nível das Nações Unidas, a nível da própria União Africana, até agora, muito pouco se tem feito para mediar uma paz, uma solução pacífica para o conflito do Sudão.
Aqui, no fundo, eram duas “comadres” que depois se desentenderam e criaram dois grupos beligerantes. E, por causa disso, o Sudão vive uma crise humanitária muito séria, muito complicada mesmo. Todas as características para se considerar o Sudão um Estado falhado estão aí reunidas.
ANGOP – Deve o Presidente João Lourenço colocar na sua lista de prioridades essa questão do Sudão?
AF – O Presidente já a colocou na sua lista, até porque a própria Agenda 2063 previa livrar África dos conflitos até 2020. Não foi possível em 2020, então tiveram que criar uma agenda para ter 2030 como a nova data, o novo prazo limite.
Portanto, tudo isso também condiciona o próprio desenvolvimento do continente. Mas há um outro dossiê também, para além do conflito da RDC e também o problema do Sudão, que a nova presidência vai ter mesmo que se ocupar também dela. Há outro problema que é lá na África Ocidental, o Mali, o Níger, o Burkina Faso.
E aliás, quando fala do Sudão, veja que o Sudão está lá no Oceano Índico, mas se acompanhar a linha do Sudão, naquele cinturão, depois do Sudão vindo mais para o interior do continente, vamos encontrar o Burkina Faso, o Níger, a Guiné-Conakry. Esses países africanos sofreram, a partir de 2023, uma série de golpes de Estado. Estão suspensos a nível da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CDAO) e, concomitantemente, também estão suspensos a nível da União Africana.
Eu não sei como é que o presidente vai tratar esse dossiêr também, mas é também uma situação que, de facto, vai preocupar o continente, porque a ausência desses países, quer das suas organizações regionais, como também da União Africana, poderá, de certo modo, influenciar negativamente em alguns dos grandes objectivos da União Africana.
ANGOP – No panorama internacional, as informações dão conta de negociações entre a Rússia e os Estados Unidos da América sobre a paz na Ucrânia. No entanto, há aqui um aspecto notório, a ausência do principal beneficiário, a Ucrânia. Que avaliação faz disso?
AF – Isto nos remete para uma teoria muito mais das relações internacionais, que tem a ver com o realismo político internacional, que tanto vê primeiro os Estados como os actores mais proeminentes das relações internacionais, mas, sobretudo, também centra-se na questão do poder dos Estados.
Isto reflecte justamente essa perspectiva, segundo a qual, dois Estados dominantes a nível do sistema político internacional, no caso, Estados Unidos e a Rússia, e que estão a negociar a paz de um pequeno Estado e que está a ser marginalizado. Ou seja, um dos principais interessados não está a ser tido nem achado, mas não para por aí, mais do que a própria Ucrânia, está a haver também aqui uma marginalização da própria União Europeia (UA).
A própria União Europeia, que sempre esteve ao lado dos Estados Unidos com o Presidente Joe Biden, por causa deste conflito, sancionou a Rússia, deixou de comprar o gás russo, pôs muita coisa sobre a mesa e, agora que se fala de uma negociação pacífica, ou de uma negociação para a paz, a União Europeia também é excluída, praticamente.
E isso está a causar já muito debate a nível da própria União Europeia, porque é histórico, nunca houve esse rompimento das relações transatlânticas entre os Estados Unidos e a Europa, deste ponto de vista, o Presidente Donald Trump, está a fazer algo inédito. Portanto, já o fez, a questão da NATO, na sua primeira passagem, mas depois o Presidente Joe Biden reparou tudo e ele agora vai aos extremos.
Depois disso, abriu um precedente e, depois da Segunda Guerra Mundial e com o Plano Marshall, as relações entre os Estados Unidos e a Europa foram muito diluídas e isto é algo inédito. Portanto, o Presidente Donald Trump não quer saber nem da Europa, nem da Ucrânia. Pelos vistos, os russos terão gostado muito da abordagem dele, dos planos, da visão dele sobre os termos de pacificação.
Portanto, avança-se muito nessa questão de uma possível cedência territorial da Ucrânia, ou seja, aqueles territórios já ocupados pelos russos que não voltariam para a Ucrânia e isto agrada muito os russos. Mas, por um lado, também vai abrir outros precedentes, porque inclusive o ex-chefe da diplomacia ucraniana já veio dizer que o Presidente Zelensky não pode assinar nenhum acordo nesses termos, porque seria contra a própria Constituição da Ucrânia, seria anticonstitucional.
Vamos acompanhar o que isto vai dar, mas o que temos que reter é exactamente isto. Os modos de negociação estão a ser feitos num puro realismo político, onde os Estados dominantes, no caso aqui os Estados Unidos e a Rússia, estão a negociar uma paz em que um dos principais interessados tem uma voz pouco activa, está a ser um actor passivo, não só à própria Ucrânia como também à União Europeia.
ANGOP – Ao não fazer parte do momento das negociações, a Ucrânia deve ou não acatar as orientações advindas desses encontros?
AF – Agora eu não sei se a Ucrânia está em condições de acatar ou não, o que eu posso dizer é que a Ucrânia não tem força para fazer opções que lhe sejam muito favoráveis, não tem, não tem força porque a maior força da Ucrânia, até ao momento, vinha sendo os Estados Unidos, que vinha patrocinando, portanto a guerra não é contra a Rússia.
Se o principal patrocinador deixa de o fazer, então naturalmente a Ucrânia fica fragilizada, mas como não era o único patrocinador, a Europa também estava a patrocinar, o que poderá agora mudar o rumo dessas negociações será a posição da Europa.
ANGOP – Face a este contexto actual, que demonstra uma posição um tanto quanto dúbia dos Estados Unidos da América, como é que a Europa deve agir?
AF – A Europa está numa situação muito complicada, porque, por um simples cenário, apoiar a Ucrânia sem os Estados Unidos à frente também seria um marco histórico, seria aqui um rompimento dessas relações muito sólidas, tradicionais, seria aqui o virar de costas entre a Europa e os Estados Unidos, mas também, se não o faz, ela não se afirma, nem se firma como um actor importante no sistema político internacional. Tem a ver aqui também com questões de segurança, porque temem que a Rússia é um perigo, portanto, e que Vladimir Putin deve ser travado, etc.
Agora, pode abrir também um precedente, vamos supor que a União Europeia invista pesado no apoio bélico à Ucrânia, que possa permitir um equilíbrio no teatro das operações, a Rússia pode declarar também a União Europeia como um inimigo. Isto podemos abrir aqui uma possibilidade, por enquanto ainda muito remota, mas uma possibilidade de uma guerra entre a Rússia e a União Europeia.
E depois ficaria também uma situação complicada, porque todos os países da União Europeia são membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO), os Estados Unidos são membros da NATO, então a Europa estaria agindo apenas como bloco continental, sendo que os Estados Unidos logo não poderiam ser percebidos nos termos de uma acção a nível da NATO. E isto abriria aqui outra situação, mas aqui também um outro elemento que se coloca em dúvida se realmente a Europa tem capacidade militar para substituir os Estados Unidos como principal patrocinador da Ucrânia na guerra contra a Rússia. Isto ia ter que mexer muito com os orçamentos da União Europeia, os Estados.
ANGOP